quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Desafio



Arrancou dos pensamentos e jogou todas as aflições na folha de papel em branco.
Embrulhou, arremessou com força no cesto de lixo reciclável e já começou a sentir a ansiedade pelos tormentos renovados que dali surgiriam.
Sabia que a vida não teria mais sentido sem novas superações.
Sorridente, abandonou a sala e desceu as escadas.




Helena Perdiz

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

@AquiNaTorre




A princesa Carmelita havia sido trancada na torre mais alta do castelo, pela própria família. Não por maldade, apenas por questões burocráticas: tratava-se de uma tradição familiar, vinda de muitas e muitas gerações. O termo de compromisso com o aprisionamento da filha – desde que completasse dez anos até o momento em que fosse libertada por um príncipe encantado – era assinado já no casamento, momentos antes do narrador dizer “e viveram felizes para sempre” e o logo da Disney saltar na tela; “mas e se nascesse um filho homem?” – ele não teria como nascer homem.  E pronto.

Carmelita – já com seus 17 anos – era feliz na torre. Tinha frigobar, academia, Nintendo Wii, internet wireless de 20MB, celular com acesso às redes sociais, TV 3D, box com as cinco primeiras temporadas de How I Met Your Mother;  só lhe faltava uma coisa: vontade de sair daquele lugar. Ela rejeitava cada rapaz que aparecia montado em sua Harley-Davidson branca.

Sua mãe, Rapunzel Neta, insistia para que a filha fizesse buscas diárias de príncipes no Facebook, mas nenhum lhe agradava, pois ela dizia ser uma adolescente moderna, que queria curtir a vida sem compromissos e, eles, sempre muito certinhos. Tinha, também, outros argumentos plausíveis, como “mãe, a senhora, por acaso, viu no Twitter que o índice de divórcios aumentou 93% nos últimos quatro anos? Vou me casar para quê?”, ou “depois o príncipe aparece, mal conheço o cara e a gente casa, descubro que ele é alcoólatra ou psicopata e, aí, já viu”.

A realidade era que a princesa estava extremamente viciada na Internet e tinha plena consciência de que os amores platônicos, que mantinha na rede, trariam bem menos dores de cabeça com o passar dos anos; notava que tudo era mais atrativo, mais interessante, quando se tratava do virtual.

Acabou por perceber que já havia recebido seu futuro marido e, com a aprovação do rei, que criou uma nova lei para permitir a cerimônia, aceitou o pedido implícito de liberdade: casou-se com o computador.





Por Helena Perdiz 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Rotina




Estava preocupado. Amava Catarina, mas não com a mesma intensidade, com a mesma vontade que em outra época. E, por ironia, o motivo disso era o fato de ainda permanecer o mesmo amor de outra época. Estava cansado de amar daquela maneira, queria um novo amor por sua esposa, procurar e inventar amores diferentes pela sua Catarina. Não conseguia.

A verdade é que havia outra ocupando seus pensamentos, chamava-se Rotina. Era Rotina quem o deixava preocupado, não Catarina.

Todos os dias, Rotina fazia com que ele e Catarina tomassem café da manhã às seis, fossem trabalhar às sete, voltassem para casa às oito e quarenta e cinco, perguntassem, quase que simultaneamente, "e o seu dia, como foi?" às nove e trinta e deitassem logo em seguida. Isso já acontecia há onze anos e dois meses; Rotina havia apagado muito do brilho que ele enxergava em Catarina e vinha mostrando-se persistente no objetivo de apagá-lo de vez.

Naquela manhã que parecia ser como outra qualquer, ele derrubou a caneca de café no chão, por descuido - estava avoado em virtude de sua preocupação com Rotina, ainda não tinha conseguido arquitetar nenhum plano para vencê-la. O café espirrou em Catarina, que já estava vestida para o trabalho e, furiosa, ficou quase roxa e começou a gritar. Fazia tempo que ele não a via quase roxa. Fazia tempo que ele não a via gritar. Na verdade, fazia tempo que ele não a via esboçar qualquer reação em sua face que não fosse obra de Rotina; foi então que ele percebeu que, sem querer, ele havia comprado uma briga com Rotina. Decidiu que era hora de levar isso adiante. 

No dia seguinte, derrubou o leite. Mais uma vez pôde ver Catarina gritando histericamente e observar em cada curva de seu rosto o quanto ela ficava linda quando estava brava. Apaixonou-se por Catarina brava; passou os próximos dias derrubando, esquecendo e quebrando tudo o que podia, de maneira que não parecesse proposital. Ela gritava, gritava e gritava. E como era linda! Estava tudo maravilhosamente bem, como há muito tempo não acontecia.

Passada uma semana, ele percebeu que as brigas frequentes já eram obra de Rotina. Como estava decidido a vencê-la, tratou logo de pensar em inovações; trouxe flores à Catarina, que chorou emocionada como há muito tempo não chorava. E como era linda Catarina com lágrimas de alegria escorrendo pelo rosto! Apaixonou-se por Catarina emocionada. Passou uma semana emocionando Catarina.

Durante várias e várias semanas, ele usou toda a criatividade que lhe foi capaz para trazer à tona diversas catarinas. Apaixonou-se por cada uma delas. Tudo ia bem e Rotina já não era mais um problema. Não estava mais preocupado.

Naquela manhã que não deveria parecer-se como outra qualquer, o casal levantou, tomou o café da manhã às seis horas e, perto das sete, quando estavam quase de partida para o trabalho, ele se deu conta de que não havia planejado nada de diferente para aquele dia. "Rotina voltou", pensou.

Foi um dia de trabalho tenso e sofrido. No escritório, ele só conseguia pensar na tristeza que lhe causaria o retorno de Rotina e a consequente falta de amor por Catarina. Ele havia falhado. Seus pensamentos não davam espaço à novos planos, somente à tensão e ao medo.

Chegou em casa às oito e quarenta e cinco, jantou com Catarina. Às nove e trinta ela perguntou "e o seu dia, como foi?" e não obteve resposta. Ele fitou-a fixamente. Ficou observando-a durante incontáveis segundos - para ele, foi a eternidade, até concluir o inesperado: Catarina estava com um brilho que há muito tempo ele não enxergava. Era ela, sua Catarina, a mesma Catarina que caminhava ao lado de Rotina, que saía de casa todos os dias no mesmo horário, que fazia a mesma pergunta todas as noites, que não gritava ou expressava fortes emoções. Rotina estava presente e isso não era mais motivo de preocupação. 

Olhou bem para a rotineira Catarina, a Catarina de sempre. Apaixonou-se.


Por Helena Perdiz
(Texto criado para o Desafio 4 do PSV Site - Crônicas) 

sábado, 15 de janeiro de 2011

O Efeito



Cansou-se da felicidade plena.

Aquele otimismo elevado tornava tudo muito fácil. Não havia temor, nem incertezas, apenas uma vida regada de monotonia; os esforços eram mínimos, superados pela forte confiança que a tornava, em seus pensamentos, capaz de qualquer coisa que desejasse; além de tudo, era serena ao extremo. Nunca havia sentido raiva de um ser humano sequer.

Rebeca queria algo novo, que trouxesse o aperto da dúvida no peito. Queria conhecer a aflição que via nos filmes, ter receio do que já é certo, sentir-se uma aventureira.

Com a determinação a qual já estava acostumada, despejou os ingredientes na panela e preparou uma deliciosa Torta de Fúria. Ela finalmente veria a vida de maneira diferente, com reclamações a serem feitas e palpitações aceleradas no coração.

Comeu o primeiro pedaço; o gosto amargo continuou a amarrar a boca, mesmo após escovar os dentes com a pasta aprovada entre nove a cada dez dentistas, mas não houve nenhuma mudança aparente.

“Talvez não tenha comido o suficiente”, pensava, ao comer outro pedaço, seguido de outro e outro.

Rebeca era persistente. Passou meses preparando e deliciando-se com Torta de Fúria no almoço e no jantar. Comia tudo sozinha, na esperança de que surtisse efeito; comprava novos ingredientes uma vez por semana e os estocava na despensa.

Foi numa tarde de compras que ela encontrou seu antigo vizinho, Bernardo – correspondente de seus flertes durante a época em que morou no Condomínio Bulhufas.

Aproximou-se, aguardando um cumprimento caloroso, já de braços abertos, quando ele arregalou os olhos e:

-Rebeca! Como você engordou!

Bernardo jamais havia imaginado que um dia seria atacado, tão cruelmente, por uma mulher munida de uma lata de ervilhas (tão grande).

Era a primeira vez que Rebeca sentia os efeitos da Torta de Fúria.





Por Helena Perdiz